O “ato médico” refere-se a todas as atividades que são de responsabilidade do médico no que se refere à prevenção, diagnóstico e tratamento. Tais atividades estiveram subordinadas à sua época: o ato médico já consistiu de magias e ritos na pré-história; era dependente de deuses como Ninib e Nabu na Mesopotâmia; tornou-se mais “natural” na Grécia. Até então, a Medicina era praticada pelos que tinham vocação para tal, os “representantes dos deuses na Terra”, e ser médico era como algo hereditário.
A medicina só foi institucionalizada como profissão na Idade Média, após a fundação das primeiras universidades européias. Iniciou-se também a separação da Medicina e outras áreas da saúde. A separação legal entre Medicina e Farmácia, por exemplo, se processou a partir da Idade Média, não permitindo, desde o princípio, a prescrição pelo farmacêutico, considerada um ato privativo do médico.
Já a odontologia, sempre manteve certa separação da Medicina, mas as primeiras faculdades (independentes dos cursos médicos) foram fundadas no século XIX nos EUA e França, garantindo autonomia aos dentistas. Em alguns países, no entanto, como em Portugal e na Itália, a odontologia ainda é uma subespecialidade médica.
A enfermagem sempre esteve vinculada aos mais variados campos da prática médica. A formação em nível superior dessa área teve origem na Inglaterra, em 1860.
Partindo para o contexto da Medicina no Brasil, só em 1808, com a vinda de D. João VI, foram criadas as duas escolas médico-cirúrgicas: uma em Salvador e outra no Rio de Janeiro, que só passariam, de fato, a formar médicos em 1832, quando foram transformadas em “Faculdades de Medicina”.
Até 1950, a classe médica não tinha organização como categoria profissional para defesa de seus interesses. Em 1951, a Associação Médica Brasileira tomou iniciativa nesse sentido: tentou fundar a “Ordem dos Médicos”, que foi substituída pelos Conselhos de Medicina (federal e regionais). Desde então, os médicos contam com um fórum para discussão de questões relativas à profissão.
Dentre todas as profissões da área da saúde, poucas são as que possuem regulamentação específica, sendo a maioria organizada através de pareceres, resoluções e portarias. No Brasil, o ato médico não é definido legalmente (ou melhor, não foi atualizado, já que a ultima regulamentação foi em 1931). Ou seja, os limites dos mais de 280.000 médicos que trabalham no Brasil e da maioria dos profissionais ligados à saúde são indefinidos.
O Projeto de Lei que objetiva a regulamentação da Medicina (PL 7.703/2006) ficou conhecido como “Ato Médico”. Tal projeto especifica quais são as funções exclusivas dos médicos e quais necessitam ou são exclusivas de outros profissionais. O diagnóstico de doenças e indicações terapêuticas, por exemplo, passariam a ser privativos ao médico, exceto as doenças referentes à odontologia e à medicina veterinária (não se incluem aqui os diagnósticos fisiológicos e psicológicos, que são compartilhados com outros profissionais). Todos os procedimentos invasivos teriam que ser aprovados por um médico, além das aplicações de injeções, cateterização, punções, que precisariam de prescrição médica. Há, também, a disposição sobre as exclusividades dos outros profissionais da saúde, divididos em 13 áreas diferentes.
Eis uma grande polêmica que envolve a briga de interesses. De um lado os médicos alegam a proteção e segurança ao paciente, a regulamentação de sua profissão, e a definição dos limites que lhes cabem. De outro, os demais profissionais da saúde temem que o projeto coloque em risco o cuidado integral previsto na constituição, tornando privativas dos médicos atividades até então realizadas por outros profissionais.
Edson de Oliveira Andrade, Presidente do Conselho Federal de Medicina, defende o projeto: “No momento atual, é esta medicina competente e compromissada com sua história de cientificidade e solidariedade humana que vem à casa do povo brasileiro solicitar seu pleno reconhecimento e valorização. Este pedido, entretanto, jamais exigirá privilégios em relação às demais profissões da área da saúde, mas tão apenas respeito às prerrogativas e características profissionais que os tempos imemoriais consagraram e que, por seu reconhecimento social, configuram o ser médico”.
Mas, afinal, tal discussão dá enfoque à saúde da população ou os interesses particulares de cada “classe profissional”? A volta a um modelo mais individual (voltado para classes), contrário a um modelo coletivo, é um avanço para a saúde? A autonomia cobrada pelo médico não lhe coloca responsabilidade demais sobre o processo doença/cura? Seis anos de curso tornam os médicos hábeis e competentes a fazerem diagnósticos de doenças nas 13 áreas das profissões regulamentadas?
A Carta de Otawa (1986) refere-se à promoção à saúde como medidas que envolvam a interação e integralidade, envolvendo vários campos de atuação, com seus aspectos políticos, sociais, econômicos e culturais. E foi essa visão “global” do processo saúde-doença que alicerçou a formação do SUS. Esse sistema único deve garantir um atendimento multidisciplinar, em que cada profissão respeite seus limites de forma ética. É claro que não podemos retomar a imagem de “médico-Deus”, mas, por outro lado, os mais de 3.300.000 (sim, três milhões e trezentos mil) profissionais da saúde, incluindo os médicos, não podem agir onde não possuem formação, correndo o risco de serem inconseqüentes e irresponsáveis.
Acima de tudo, o sistema de saúde deve progredir para o bem-estar geral e guiar-se como na Declaração de Genebra da Associação Médica Mundial: “A saúde dos meus pacientes será a minha primeira preocupação”. Só assim chegaremos a uma decisão justa.
6 comentários:
Genial! Eu não sabia nada sobre esse Ato Médico, e é uma vergonha pra nós ficar por fora disso.
Obrigada pelo esclarecimento!
Ainda não sei... o Ato Médico é uma iniciativa louvável, mas deve ser muito bem pensado. Não digo só acerca da responsabilidade do Profissional Médico, mas também da burocratização de processos que antes eram feitos com mais facilidade, como por exemplo injeções. o.O
Considerando o pouco conhecimento que possuo sobre o assunto; penso que a lei do ato médico, mesmo com sua positiva proposta de regulamentação dos atos médicos, não seria realmente benéfica para o sistema de saúde brasileiro. Uma vez que, ao ser aprovada, o modelo de assistência à saúde da população estaria muito mais fundamentado na dicotomia doença/cura - defendida anteriormente no modelo mecanicista - contrariando, dessa forma, o projeto de assistência multidisciplinar na saúde e prevenção de doença que seriam muito mais benéficos aos cidadões brasileiros. Enfermidades e doenças não são tratadas, diagnósticadas e prevenidas unicamente por médicos e, em algumas vezes, ele nem mesmo está apto a tomar tais responsabilidades. Além disso, a saúde nem mesmo é definida mais como ausência de doença - esse é um conceito ultrapassado. Saúde é um bem estar geral. Logo, esse bem estar geral seria possível através de uma assistência coletiva à saúde da população, ou seja, com cada profissional tendo seu trabalho valorizado na promoção de saúde da população; ao invés de tornar os médicos os únicos responsáveis pela cura/doença. Ana, adorei o tema que você escolheu. E parabéns pelo texto, ficou ótimo!!
Considerando o pouco conhecimento que possuo sobre o assunto; penso que a lei do ato médico, mesmo com sua positiva proposta de regulamentação dos atos médicos, não seria realmente benéfica para o sistema de saúde brasileiro. Uma vez que, ao ser aprovada, o modelo de assistência à saúde da população estaria mais fundamentado na dicotomia doença/cura - defendida anteriormente no modelo mecanicista - contrariando, dessa forma, o projeto de assistência multidisciplinar à saúde e prevenção de doença que seriam mais benéficos aos cidadões brasileiros. Enfermidades e doenças não são tratadas, diagnósticadas e prevenidas unicamente por médicos e, em algumas vezes, ele nem mesmo está apto a tomar tais responsabilidades. Além disso, a saúde nem mesmo é definida mais como ausência de doença - esse é um conceito ultrapassado. Saúde é um bem estar geral. Logo, esse bem estar geral seria possível através de uma assistência coletiva à saúde da população, ou seja, com cada profissional tendo seu trabalho valorizado na promoção de saúde da população; ao invés de tornar os médicos os únicos responsáveis pela cura/doença. Ana, adorei o tema que você escolheu. E parabéns pelo texto, ficou ótimo!!
Correção: cidadãos(linha 7).
Eu realmente tinha pensado que o ato médico a essa altura já estaria aprovado, já que li há algum tempo que ele fora aprovado pela câmara dos Deputados. Sou favorável a cada profissional ter sua função bem definida. Isso é crítico e é algo que tem de se renovar ao longo do tempo, pois continuarão a surgir novas tecnologias e campos de trabalho em saúde, apesar de os temas gerais serem os mesmos: prevenção, reabilitação, diagnóstico, terapêutica...
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